por Samuel Lourenço Filho
Ontem no culto de domingo ouvi um cântico que remeteu ao tempo que peregrinei na prisão. Foram mais de 8 anos em privação de liberdade e durante todo tempo que lá fiquei, eu me aproximei dos escritos religiosos e, em especial, da liturgia que há naquele espaço. Na cadeia, esse negócio de igreja é uma parada muito intensa.
Eu cheguei na cadeia na condição de homicida, logo não me caía bem a ideia que Deus me amava. “Se Deus me ama, como pode deixar eu matar uma pessoa? E mais, ele não amava a vítima?”. Foram anos de questionamentos, na verdade, são anos de questionamento, eu ainda não me dou bem com isso, mas confesso, tenho prosseguido.
Enquanto cantava o louvor, ficava a lembrar da forma como a fé na prisão é questionada: “ser crente na cadeia é fácil, quero ver ser crente quando abrir o portão!” – sentenciava o guarda, o professor, teu familiar e o preso ao lado. Ou seja, ser crente na cadeia é tentar acreditar em Deus e não nas pessoas ao seu redor. É complexo.
Uma vez, dentro da cela, o rapaz colocou a mão na minha cabeça e pedia para eu repetir a palavra “glória”. Fiz como manda o figurino, e de tanto glória que eu falei, minha pronúncia embolou, pronto: foi suficiente para testemunhas dizerem que eu estava sendo batizado com Espírito Santo e com fogo. Eu, já cético com relação ao amor de Deus por um homicida, retrocedia mais um pouco diante do batismo decorrente de uma pronúncia embolada. Se pedisse para eu repetir “três tigres tristes tiraram o trigo”, eu certamente seria batizado na segunda repetição.
Ontem, enquanto cantava, eu lembrei das vezes que chorei. Chorei pedindo desculpas, chorei implorando perdão, chorei em busca de um arrependimento, chorei por estar em dúvida sobre o meu choro, se era pela dor da cadeia ou uma conversão no pensar. Chorei de agonia, de saudade, por não bancar mais a cadeia. Chorei e chorei por muitas coisas. Bandido chora.
Ontem no culto, ao ouvir o som que aprendi a cantar na prisão, me lembrei do meu tempo de carceragem. Onde os agentes religiosos chegavam e o pátio era tomado de gente. A televisão do pátio e das celas eram desligadas, todos colocavam a camisa. Nessa hora, não podia fumar maconha nas celas, ouvir rádio ou assistir TV. Em nome de uma suposta reverência, todas as atividades ficavam suspensas até o culto terminar.
Um monte de preso formando um lindo coral. Clamando a Deus por um milagre no processo, intercedendo pela família, alguns, pedindo consolo aos familiares das vitimas e às próprias vítimas. Sei lá, mas nessa hora Deus deveria ter uns 70 assistentes para tamanha demanda. É catarse, é oração, é entrega, é fé… Mas e ao sair, será que ela se mantém?
Ontem, já em Liberdade Condicional, eu estava no culto lembrando sobre essas coisas. Já não sou mais esse crente todo. Alternei a leitura bíblica com alguns textos da faculdade ou por livros que descobri aqui fora. Eu tenho um apreço pelo Bauman! Orei muito mais do que oro hoje em dia. Mas tenho buscado exercitar mais o amor. Qualquer flagrante é motivo para eu amar. Eu amo de forma surreal, pois foi por um amor insano que fui alcançado.
Naquele mês de abril de 2007, quando um outro preso se aproximou de mim e disse: “Jesus te ama, apesar das tuas mancadas”, eu passei a buscar por esse amor, e por ele tenho dado a minha cara a tapa. Mas não deixo de amar. Junto com o amor, vem o perdão. Eu me sinto amado e em certa medida, perdoado, o que me permite sair por aí feliz.
Ontem, no culto, percebi enquanto cantava, que aquela semente, cultivada num coração seco, numa cela insalubre, e regada com lágrimas, em meio à descrença de todos, se tornou uma árvore frutífera. Tem gente que não acredita na fé que se desenvolve na prisão, em especial a fé cristã, nem mesmo muitos cristãos acreditam. Tudo bem, às vezes, o que compete a ti, é prosseguir. Ontem no culto eu lembrava sobre essas coisas, e caminhar desde a prisão e chegar até aqui tem sido um experimento de vida fantástico.
Samuel Lourenço Filho – Cronista, palestrante, egresso do Sistema Prisional, aluno de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – UFRJ. Samuel também é uma das vidas alcançadas pela Capelania Prisional de Missões Rio.
Fonte: https://jornalggn.com.br/noticia/ser-crente-na-cadeia-e-mole-por-samuel-lourenco-filho